quinta-feira, 17 de abril de 2014

Música nova - "Primeira Vez"

Alô alô, pessoal!
 
Hoje tenho o prazer de postar aqui a minha primeira parceria com o grande Leonardo Frascoli! A gente já ensaiou essa parceria várias vezes. Tocamos juntos em um show - a foto que ilustra o "vídeo" é desse show -, e quase concretizamos nossa parceria ainda na Lobos de Calla. Mas, eis que, após muitos encontros e desencontros, a colocamos em prática. E essa música em parceria promete ser a primeira de muitas.
 
Tudo começou a partir de uma base harmônica que eu tinha "na gaveta", pois já tinha tentado inúmeras vezes iniciar uma letra, sem sucesso, e de uma poesia maravilhosa do Leo, "Primeira Vez". Mexe aqui, mexe ali... o resultado é este:
 
 

Aquilo que se tem
Nunca é o que se quer
A busca
Muitas vezes desvairada
Por tentar satisfazer
Uma vontade assim qualquer
Que no fim pode até não dar em nada

Mas o que é nada
Para quem tem tudo?
Os sonhos se refazem,
O peito sempre aberto
Na tentativa de buscar
Espasmos de alegria, inconsequência e timidez
Nuances que são únicas
Na perfeição da primeira vez
Na perfeição da primeira vez
Que para o tempo
Faz o mundo despertar

O momento, o segundo, o olhar
Sinto o anseio, o desejo, transbordar
Vidas incompletas
Sonhos distantes
Os rostos se procuram
Corações se confrangem
Na fugacidade de um instante
O primeiro beijo
O amor acontece

Faltam palavras
Não existe razão
Apenas a certeza incerta da paixão
Imprecisa equação

A guarda baixa
As portas ficam escancaradas, abertas
Não há defesa, nem alerta
Apenas a certeza da paixão incerta
Tudo muda no ardor da descoberta

O que é tudo
Pra quem não tem nada?
O encanto, a novidade
Nas coisas simples
A felicidade
Incontida, reprimida há tempos
Preenche os espaços
Na perfeição da primeira vez
Na perfeição da primeira vez
A vida ganha cor
O amor pede passagem

terça-feira, 8 de abril de 2014

Conto - Lifening

Alô alô, pessoal!

Hoje, abro a sessão "Literatura" aqui no blog, pois além de ser uma paixão minha, me aventuro muito nessa área. Escrevo alguns contos, e desde 2012 venho escrevendo o meu primeiro romance, a passos lentos. Mas espero que em breve eu possa finalizá-lo e contar a vocês a história de Zé Bio.

Sempre me senti muito seguro com relação à música. Escrevo minhas canções, gravo, divulgo... o fato de me satisfazer é o bastante. Não tenho medo ou constrangimento com relação ao que os ouvintes irão pensar. Porém, nunca senti a mesma segurança com relação à literatura, pois acho uma linguagem muito mais complexa, e que te permite "errar" menos. A margem de flexibilização da realidade é menor, sei lá, e isso torna a escrita uma aventura bem mais árdua do que a música. Pelo menos para mim. E isso me fez deixar muitos papéis escritos na gaveta. Este conto, Lifening, é o meu quebra gelo. Ele debuta a divulgação dos meus escritos. Eu, sinceramente, espero que gostem.

Quanto ao conto em si, um pequeno "prefácio". Estou sempre ligado em programas, vídeos, textos, tudo sobre aviação. Minha curiosidade mórbida me faz procurar áudio de caixas-pretas, pesquiso explicação para acidentes, todo o tipo de coisa. E quando ocorreu o famoso e trágico acidente da Air France, com a aeronave caindo no Oceano Atlântico, fiquei muito ligado na história. Pesquisei muito sobre o acidente na internet, assisti a muitos vídeos e programas com explicações e os diálogos dos pilotos.

Imagino que a queda de um avião deva ser a situação mais horripilante pela qual uma pessoa possa passar, pela demora até que a hora fatal chegue. E isso ficou na minha cabeça a ponto de sonhar com uma situação parecida. Mas no sonho, havia salvação. E a salvação do sonho é a mesma do conto. O sonho foi recente, e em janeiro comecei a escrever o que está aí abaixo. A infeliz coincidência foi o acidente similar com aeronave da Malaysia Airlines durante o processo. O conto ficou ainda mais vivo para mim.

Para finalizar: 1 - Acrescentei ao longo do conto algumas trilhas sonoras que acredito ajudarem a entrar no clima, incluindo uma que compus em especial para ele. Conheci Berlin durante o decolar de um avião. Foi quando a ouvi pela primeira vez. Foi um voo conturbado, e a sensação daquela experiência contribuiu muito para a escrita deste conto. Não pude deixa-la de fora. 2 - Alguns diálogos estão em inglês. Sorry.

Obrigado pela leitura,


E.L.


Lifening

(Eduardo Ladeira)
  

1 - GLASTO'

(Trilha sugerida: Lifening, Snow Patrol)




O aeroporto de Guarulhos estava apinhado, como de praxe. Mas naquele dia, Olavo nem ligou. Ele esperava ansioso a chamada para o embarque. Viajava sozinho, e seu voo para Londres partiria em breve. De lá, rumaria para o famoso festival de música de Glastonbury, e os planos e a ansiedade pelos dias à frente agitavam sua cabeça.


Ao ouvir a chamada para o embarque, ocupou seu lugar na fila rapidamente. Era um dos primeiros. Queria encontrar logo o seu assento e evitar aquela confusão tradicional de acomodação de bagagens de mão. Era um camarada discreto, na dele, e esperava de seu "companheiro de viagem" no assento ao lado apenas o mesmo. Já dera muito azar em viagens passadas.


Após apresentada a documentação requisitada, Olavo adentrou a aeronave da British Airways e se dirigiu ao seu assento. Retirou de sua mochila o livro que seria sua companhia pelas próximas horas e a colocou no compartimento acima da sua cabeça. O livro era "Os Senhores do Arco", segundo volume da série "O Conquistador", do autor britânico Conn Iggulden; série que narra a trajetória do grande Genghis Khan. Assim como o grande líder mongol, ele queria conquistar o mundo. Não militarmente, mas culturalmente. E aquelas andanças sempre o deixavam com o espírito renovado.



2 - ZORANA
 
(Trilha sugerida: Berlin, Snow Patrol)
Os minutos passavam demoradamente, com Olavo já acomodado em sua poltrona, quando chegou seu "companheiro de viagem". Na verdade, era uma companheira. Jovem, bonita, com cara de gringa. Ele a cumprimentou polidamente, e pegou seu fone de ouvido. Antes que ele o colocasse, a moça se apresentou. Era ucraniana, e se chamava Zorana. Ele gostou da simpatia da moça, e quis estender um pouco a conversa com aquela bela mulher. Ele a perguntou o que significava aquele nome. Ela respondeu com forte sotaque, "Made of gold". Ele viu que deveria ser verdade.

Ela riu de seu interesse e de sua reação. Olavo, percebendo a diversão da garota, imaginou que deveria estar com uma bela cara de idiota, a fitando. Balançou a cabeça para afastar a expressão e também riu. Ela retornou a pergunta, sobre qual era seu nome, e o que significava. Ele disse-lhe, "Olavo, it means survivor". Ela o olhou matreiramente, e disse, "So i think it's a good thing to travel beside you, isn't it?". Ele pensou que aquela viagem estava começando bem demais para ser verdade.

***

Mais algumas palavras foram trocadas com a simpática moça, enquanto esperavam o preparo da tripulação para a decolagem. E quando ela ficou imersa em seus próprios afazeres pessoais, plugou seu fone de ouvido e começou a avaliar as opções musicais.

Se deparou com um disco de uma banda que se apresentaria no festival ao qual ele estava rumando: Snow Patrol. Achou que, além do aquecimento para o show que a audição o proporcionaria, o repertório tranquilo dos músicos de Belfast amenizaria a tensão da decolagem. Ele não era muito afeito àquele tipo de emoção. E quando o momento chegou, estavam sendo executados os familiares acordes da tensamente bela Berlin.

E foi com essa trilha, olhando os pontos de luz que iam se distanciando lá em baixo, que ele viu a última decolagem daquele avião.

***

A viagem prosseguia normalmente, sem sustos. Foi servido um jantar, e, após, o avião prosseguia em silêncio, com o sono dos passageiros. Quase trezentas pessoas, entre passageiros e tripulação, estavam a bordo do Boeing 747-436.

Após algumas horas, Olavo acordou de um sono mal dormido. Ele considerava, não sem razão, dormir bem em avião uma tarefa semi-impossível. É claro que ele se referia à classe econômica, a única que conhecia. Assento de bacana é diferente.

Em seu headphone, o mesmo disco continuava tocando. Antes de seu sono breve, ele havia reprogramado o aparelho para tocá-lo novamente, e ele ia em seu repeat infinito. No momento, era tocada a música Lifening, onde o rapaz da banda falava daquilo que desejava da vida; todas coisas, simples. Desligou a música, acendeu sua luzinha solitária, e foi ler sobre as aventuras do "Soberano Supremo" mongol.

Zorana dormia ao seu lado. As janelas estavam fechadas, e mesmo que estivessem abertas, não se veria nada lá fora. Sobrevoavam o Oceano Atlântico. Era noite. Estavam a 10 mil metros do mar, e a uns 15 mil de seu fundo. Pensar nisso daria calafrios em qualquer um.

Foi quando o avião deu sua primeira tremida mais brusca. Não foi suficiente para tirar todos os pasageiros do sono, mas alguns acordaram, assustados, como sua companheira de viagem, que o olhava com uma inchada cara de sonolenta confusão. E então, veio outra.

A voz da comissária de bordo se fez ouvir no alto falante, solicitando que todos permanecessem em seus lugares, com o cinto de segurança afivelado. Segundo ela, o avião passava por uma região de alta turbulência.

Mas o estrondo que veio a seguir não se parecia muito com uma turbulência. Parecia que um caminhão sem freio havia colidido com a lateral do avião. Mas ao que tudo indicava, não era um caminhão. E ninguém sabia o que era.

Todos os passageiros estavam despertos. O avião continuava voando, aparentemente em linha reta, mas seu percurso não era tranquilo como antes. Ele tremia, e as pessoas também. Zorana, involuntariamente, segurou a mão de Olavo, e ele a olhou e viu espanto em seus olhos. "What's going on?", ela perguntou, ao que ele contou a ela sua mais inofensiva mentira: "Don't worry, it's gonna be okay".

A tremedeira do avião foi aumentando gradativamente, e algumas pessoas começaram a perder o controle. Um menino chorava, uma senhora rezava, um homem tentava acalmar sua mulher... Olavo, que segurava a mão de sua recém conhecida, olhou para o outro lado da cabine, e viu um casal idoso, com cara inglesa, que fazia o mesmo, de mãos dadas. A senhora não mostrava medo, mas sim uma espécie de conformidade com o que se passava e agradecimento pela vida. Um sorriso triste estava desenhado em seus lábios. O senhor apenas a fitava, com uma cara de que, "se estou com você, está tudo bem". Pode parecer estranho, em meio ao pânico crescente, mas ele se emocionou com a singela beleza da cena e sorriu.

Zorana, sem entender, o olhou, com cara de quem pensa que ele havia enlouquecido. Ele a olhou com ternura e deu-lhe um beijo. Ela não esparava por aquilo, mas não o rejeitou. Se afastou e a encarou novamente. "I'll take care of you", ele disse, e uma lágrima silenciosa se escorreu pelo canto do seu olho direito. Ela era linda, e ele se emocionou mais uma vez. Chorou sorrindo.

Mas aí, um novo estrondo, como o anterior, se fez ouvir, e tudo o que se seguiu foi loucura.

***

O avião parecia totalmente fora de controle. Com seu enorme peso, ele começava o que parecia uma curva para a esquerda, depois para a direita, infinitamente. Não tinha estabilidade nenhuma. Seu peso tornava o início do declínio lento, depois forte, e quem quer que estivesse no comando travava uma briga árdua com a força bruta daquele gigante de aço solto no ar.

As pessoas choravam, gritavam, chacoalhavam em suas poltronas. Uma brasileira gritava um "Pai Nosso" que parecia mais causar pânico em quem estava por perto do que acalmar. Um homem de turbante gritava uma reza em uma língua árabe. Olavo estava apavorado, mas Zorana se tornou uma missão que o tirou um pouco daquele pandemônio.

A moça chorava copiosamente, e falava coisas em seu idioma de origem. Olavo mandou o inglês pro espaço e sussurava em seu ouvido palavras em português, abraçado a ela. "Fica bem, vamos ficar bem". Mas no fundo, ele não acreditava nisso. Esperava pelo impacto, e no fundo da sua consciência e razão, esperava que, quando viesse, fosse rápido.

Com o avião em stall, e nenhuma visibilidade nas janelas, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. A sensação não indicava uma subida, ou uma queda. Parecia apenas um brinquedo de parque de diversões feito para chacoalhar e testar os limites do corpo humano. E naquele ponto, o corpo humano estava cedendo. O cheiro da cabine indicava isso.

E então, o mar chegou.

***

A primeira parte da aeronave que bateu na água foi a traseira. Ela caiu com o nariz apontado pra cima, enquanto os pilotos brigavam para mantê-la voando reto até o pouso forçado na água. Não adiantou muita coisa. Com o impacto, a parte traseira do avião lambeu a água por alguns metros e acabou se partindo do resto da aeronave. Com isso, as pessoas que estavam assentadas nas últimas poltronas foram logo lançadas na água. Foi o caso de Olavo. Ele havia visto em um programa de TV, Desastres Aéreos, que as chances de sobrevivência são maiores quando se assenta na parte traseira da aeronave, e sempre seguiu o conselho.

A água logo tomou conta da pequena fração da cabine partida, e os poucos passageiros que não estavam mutilados e ainda mantinham a consciência brigavam com os seus cintos de segurança. Olavo conseguiu milagrosamente passar ileso pelo impacto e se soltou, enquanto a água dominava o espaço. Após, soltou Zorana de sua poltrona e lutaram juntos para sair da cápsula que afundava e pretendia levá-los para conhecer as pronfudezas do oceano. Em meio a toda a confusão, eles nadavam como loucos para contornar a abertura da cabine, embicada para baixo e descendo. Por fim, conseguiram se livrar do que seria seus túmulos.

Enquanto nadavam desesperadamente rumo à superfície, com Zorana apavorada agarrando Olavo e o atrapalhando em sua subida, a noite virou dia no oceano. De dentro d'água, viram a explosão do avião, metros à frente. O fogo encheu a água de luz e fez com que uma forte corrente os levasse para longe de onde estavam. Isso os ajudou a alcançar a superfície mais facilmente.

Aliviados com a volta do ar aos pulmões, eles se abraçaram na água, chorando, brigando para se manterem flutuando. O ambiente era inóspito, e, com a extinção do fogo, a escuridão tomava conta. A noite era um breu sem fim. E no meio de todo esse cenário, eles precisavam manter a mente lívida e encontrar algo que boiasse para mantê-los vivos.

***

Após nadarem ao redor da área de colisão, avistaram uma poltrona do avião, que flutuava na água. Olavo puxou a poltrona e viu que, afivelado a ela debaixo d'água, havia o corpo de uma mulher. O corpo terminava nos joelhos, e o sangue se espalhava ao redor. Zorana se desesperou e começou a nadar para longe. Olavo achou que era um bom negócio.

Ele soltou o cadáver da mulher e nadou em direção à sua companheira sobrevivente, puxando a poltrona. Queria encontrar outra, mas nada havia ao redor. A vida inteira ele havia sentido uma certa fobia do mar. Essa coisa de ficar flutuando na água, com um verdadeiro abismo abaixo, sem saber que tipo de monstruosidade pode aparecer a qualquer momento... não é fácil, realmente. Mas ali, não havia alternativa. Então, o jeito seria tentar se manter tranquilo e sobreviver o máximo possível.

Zorana chorava, agarrada à poltrona, e o perguntava, "What we gonna do?". "We have to stay alive, they'll find us", ele respondeu, tentando tranquilizá-la. Ele sabia que, mesmo que fossem encontrados, teriam que sobreviver por um longo tempo. Acima de tudo, ele sabia que, até que as forças se esvaíssem de seus corpos, eles teriam que lutar contra a fome, o frio, a sede, o esforço de se manter acima da superfície... tudo jogava contra eles.

Também não era fácil manter a sanidade.

"I don't wanna be a burden for you... sorry", ela disse, entre lágrimas, e ele prontamente respondeu, "You're not a burden. You're my salvation. You're keeping me alive. We gonna live. Listen to me! We gotta be strong." Ele sabia que teria que ser forte pelos dois. E para ser forte pelos dois, deixou que a garota ficasse com a poltrona. Ela chorava, puxando a poltrona com um braço, e o pescoço de Olavo com o outro.

"I think i broke my ankle, my leg, or something. Its's hurting a lot.", disse Zorana. Olavo se deu conta de que ele nem mesmo sabia se estava ferido ou não, pois o cérebro ainda não havia tido tempo de se preocupar com isso. Mas tudo parecia bem com ele. "Your leg is fine. You were able to swim with it, so it's fine", ele respondeu. Ela não acreditou, mas apreciou o seu incentivo assim mesmo.

Ela se agarrava à sua precária boia, enquanto ele tentava boiar, para evitar que a fadiga o derrubasse, segurando-se nela, para que não se perdessem. E assim ficaram, noite adentro, por vezes revezando enquanto ela cedia-lhe, com muita insistência, o seu lugar. O frio enrigecia os músculos de seus corpos, e suas vidas estavam dançando no fio da navalha. Tentavam conversar, para espantar o medo e o tempo, mas a perplexidade da situação roubava-lhes as palavras. E Zorana, exausta, aos poucos começava a ceder.

A garota tremia enlouquecidamente, sendo a batida de seus dentes, uns contra os outros, a solitária sonoplastia da noite. Sua pele estava mais branca do que nunca, e as forças lhe faltavam até mesmo para se manter agarrada à poltrona de assento flutuante. Olavo, notando, com o desespero de quem está prestes a ficar sozinho no meio do oceano, que sua amiga estava entregando os pontos, a abraçou e se apegou à boia com ela. Não que isso tenha facilitado a situação dela, mas a trouxe conforto, e aquele foi um minuto de paz em meio à tempestade que viviam.

Nenhum vestígio do acidente restava. Apenas eles e aquela poltrona. O resto, era água por todos os lados, até onde a vista alcançava, e o céu negro e estrelado acima. A lua era um fiapo no céu. Lua nova.

Zorana, que estava sonolenta, grogue, custando para manter os olhos abertos, com muito esforço proferiu as últimas palavras que o mundo ouviu de sua boca: "Are you a saint?".

E foi assim, nestes poucos instantes de paz, que ela se despediu desse mundo, escorregando suas mãos da poltrona e dos braços de seu bem intencionado mas incapacitado protetor, que nada podia fazer para tirá-la daquela situação. A vida se esvaziu de seu corpo como a mais singela pétala que cai de uma flor. E, mais do que nunca, o silêncio se fez no Atlântico. Olavo sabia que sua hora também estava próxima, e do fundo do coração, torceu para que realmente estivesse.


3 - A BALEIA AZUL
 
(Trilha sugerida: A Baleia Azul, Eduardo Ladeira)


Olavo estava à deriva há um bom tempo. Com a morte de Zorana, ele sentia que nada mais havia a fazer. Aceitava o seu destino. Dessa forma, boiava nas ondas que vinham. Vagava pelo Atlântico negro. Foi quando ouviu o som.

O som era um "apito" grave e profundo. Enquanto ele boiava, com os ouvidos dentro d'água e os olhos fitando as estrelas que já cediam ao lento amanhecer, ele ouviu e acordou de seu transe. Pulou na água como que saindo de um estágio hipnótico. "Um navio", ele pensou. "Ei!", começou a gritar e espadanar na água, afogando seus prórpios gritos. Porém, por mais que olhasse ao redor, nada via. E, então, ouviu de novo.

"Uóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóóónnnn..."

O barulho era ensurdecedor, e vinha de baixo. De longe. Era algo monstruoso que fazia tremer as águas do silencioso Atlântico com seu som.

Olavo sentiu o movimento da água ao redor, e todos os seus pesadelos marinhos retornaram em turbilhão à sua mente. "Que diabrura é essa?!", ele gritou consigo mesmo. Algo o impulsionava um pouco mais adiante, e seu desespero aumentava, fazendo-o nadar desengoçadamente, engolindo água e afogando. Imaginou-se abocanhado por um tubarão branco, abraçado por um polvo gigante, apanhado por uma lula (Lá?)... Mas agora, algo totalmente diferente acontecia. Hipnotizado, ele observava, enquanto acreditava que uma nave extraterrestre, ou um submarino militar americano, submergia da água. Em meio à sua loucura, imaginou-se sendo levado à famigerada Área 51, onde fariam experimentos com ele. Mas a enorme e comprida mancha clara que ficava cada vez mais nítida embaixo de si, não era nada disso.

A mancha clara subiu à superfície, enquanto Olavo observava com seu espanto hipnótico, até que sentiu a pele "emborrachada" contra a sua. Quando ainda tentava se apegar a um mínimo de sensatez em sua cabeça, foi erguido além da água, deitado em uma enorme plataforma de pele. Observando o espiráculo duplo se abrir e ejetar seu chafariz, Olavo se deu conta de que estava no dorso de uma baleia azul.

***

Inicialmente, Olavo teve a clara percepção de que seus pesadelos marinhos haviam se concretizado, e que, ao invés de ser vencido pela fadiga do corpo e as condições naturais do ambiente, sua morte seria lenta e dolorosa, devorado por um monstro. No entanto, ao invés de abocanhá-lo e levá-lo para as profundezas, a baleia ficava simplesmente parada, boiando, mantendo Olavo acima da água. Assustado, em choque, sua mente trabalhava a mil, mas o corpo descansava do esforço e do frio. E assim ficaram por alguns minutos.

Olavo foi se acalmando com o tempo, observando os lentos movimentos da baleia, que o faziam dançar sobre as águas do Atlântico. Vez por outra, sua boca se inflava, se tornando uma bola enorme, e ia se esvaziando aos poucos. Ele supunha que a baleia estava se alimentando, e aquilo lhe trouxe a lembrança de que uma hora ele também teria que se alimentar, se quisesse viver.

Quando começava a se acostumar com sua nova companheira e seu comportamento dócil, a baleia lentamente o abaixou de volta à água e sua cauda a impulsionou à frente. Olavo viu toda a extensão de seu imenso e esguio corpo passar debaixo de si, e depois, com um ágil movimento da cauda, submergir em direção ao Infinito Escuro do Mar.

Viu-se novamente só, apavorado, e lutando contra a água. Mas, minutos após, a baleia retornou, e repetiu o que havia feito antes, enquanto o sol subia ao céu e começava a castigá-lo com seus raios.

O que era antes frio, agora se tornava quente demais. Olavo se deu conta de que o sol seria mais um inimigo que colocaria em prova a sua sobrevivência, e a situação o fez se lembrar da passagem do livro que lia sobre Genghis Khan, em sua andança pelo deserto até o Reino Xixia. Muito frio à noite, muito calor durante o dia. Sua pele queimaria e congelaria. Por quanto tempo poderia aguentar assim, agravado pela falta de água para beber e comida?

Apesar de todas as intempéries, a baleia parecia cuidar dele. Às vezes ia, mas sempre voltava. E mesmo sem perceber, ou entender para onde, Olavo estava se movendo. O movimento lento e contínuo da baleia o fazia migrar nas águas do oceano.

***

Na rotina dos movimentos da baleia, as horas se passavam e Olavo vencia o dia. Ele falava com a baleia incessantemente, o que o fez se lembrar de Tom Hanks no filme O Náufrago e seu inseparável amigo Wilson. Deu à baleia o nome de Sheshnag, que no hinduísmo era um ser divino que carregava o deus Vishnu pelas águas. Sheshnag era seu deus. Salvava a sua vida, que há muito já teria o deixado sem a ajuda da baleia.

E então, quando o sol já quase tocava o limite da água no horizonte, ele soube que passaria por mais uma prova, ao avistar barbatanas de tubarões na água. Uma, depois outra, depois outra... até que se somavam em um considerável cardume de tubarões-azuis. Eram como enormes facas apontadas para fora d'água, e fez o seu sangue mais do que nunca congelar com o desespero crescente.

***

Sheshnag deixou Olavo na água e mergulhou seu corpo, mantendo sua posição e sacudindo sua cauda para um lado e para o outro, na tentativa de manter os tubarões afastados. Eles pareciam dispostos a vir cada vez mais para perto da sua presa, e Olavo ouviu novamente o canto da baleia. Imaginou que o som era para afugentar os tubarões, mas o tempo indicou que não.

Os tubarões se aventuravam ao redor da baleia, enquanto Olavo lutava contra o próprio pânico para se manter acima da superfície. O corpo cansado e queimado era cada vez mais difícil de controlar, e o esforço era um sacrifício que ele só conseguia vencer pelo excesso de adrenalina despejado no seu sistema circulatório.

O nado ágil e determinado dos tubarões-azuis tornava a batalha mais intensa a cada segundo, até que o ataque se concretizou efetivamente, quando um tubarão mordeu a pele de Sheshnag, fazendo a baleia soltar seu urro ensurdecedor.

E quando Olavo sentia que estava prestes a ser devorado pelos tubarões, ele entendeu o chamado da baleia. De todos os lados, surgiam caudas de baleias azuis nadando na direção do confronto. Os sons se somavam, tornando o mar uma massa sonora grave, fazendo os tubarões exitarem em seu feroz ataque. O cardume se afastou um pouco de Sheshnag, que se sacudia em lenta fúria, voltando a apenas rodear a baleia e seu protegido.

Após poucos minutos, o cardume de tubarões estava completamente cercado pelas insatisfeitas baleias, que seguiam avançando, e, assustados, os tubarões nadaram para o fundo, rompendo o cerco, e desapareceram no oceano. Olavo, por mais uma incontável vez naquela viagem, chorou. As forças o abandonaram de vez, e ele começou a afundar, com a exaustão o levando à semiconsciência.

Mais uma vez, quando Olavo ameaçava entregar os pontos, Sheshnag o resgatou à superfície. Seu dorso foi sua cama, no anoitecer que caía sobre o Atlântico, enquanto preguiçosas baleias vagavam ao redor.

***

Olavo era constantemente lançado à água, o que o fazia acordar o tempo inteiro. Porém, a nescessidade de descanso do seu corpo era tão intensa que ele mal se dava conta do que fazia ao boiar na água. E logo era içado para a superfície novamente. Ele não mais sabia se era a mesma baleia ou não. Sheshnag se tornara seu deus, e todas eram um só ser. Todas o haviam salvado da morte certa e cruel ofertada pelos tubarões.

Apesar de toda a loucura da situação, o que ele menos compreendia era o fato de que o homem é o predador da baleia. É aquele que está quase levando a baleia azul à extinção. Por que elas o pagavam com a vida?

Em meio a um turbilhão de pensamentos, e mesmo com a inconstância do sono que só era possível pelo auxílio das baleias, ele conseguiu que seu corpo estivesse em condições mínimas de lutar mais um dia pela sobrevivência.

***

Quando o céu começou a clarear, com o sol despontando no horizonte alaranjado, ele se deu conta de que aquele poderia ser o mais belo amanhecer de todos da sua vida, se não fosse por seu corpo faminto, sedento, e machucado pelo sol, pelo sal, pelo frio. Seus músculos doíam e sua pele estava em brasa. Não havia um lugar sequer que se encostasse que não ardia profundamente. O roçar de suas roupas grudadas pioravam a situação, mas ele não arriscaria tirá-las, acabando com sua proteção mínima.

Já faziam cerca de trinta horas que ele estava na água, e nem um mísero navio foi avistado. Nem mesmo um avião ele viu sobrevoar. Sabia, também, que estava longe da área do acidente. Que as baleias o haviam carregado adiante. Sabia que, mesmo que encontrassem destroços da aeronave, sua sobrevivência jamais seria descoberta pela equipe de resgate.

No entanto, o sentimento que nutria por aquelas baleias que o haviam adotado não o deixava perder a esperança. Ele devia isso a elas. Tinha que acreditar. Imerso nesses pensamentos, ele se lembrou de suas idas aos jogos de seu time de coração, nos quais a Massa gritava "Eu acredito!" nos momentos mais incertos. E tinha valido a pena. Ele sorriu, e começou a invocar o cântico a plenos pulmões, enquanto o sorriso se transformava em uma histérica gargalhada, fazendo-o engolir água. E assim, as baleias nadavam e o carregavam para longe.


4 - SORO
 
Cada vez mais, Olavo percebia o movimento. No início era mais difícil, pois a falta de referência visual, aliada à lentidão do nado da baleia, tornavam quase imperceptível o movimento. Mas ele sabia que era levado a algum lugar. Temeu que mais aventuras como a do dia anterior pudessem lhe pegar de surpresa. Mas a surpresa para ele foi outra.

***

Enquanto a manhã monótona avançava, Olavo se movia com as baleias. Por vezes nadava, por vezes se deixava levar. Passado o desespero inicial, ele passou a apreciar a companhia delas. Amava aqueles animais. Mesmo sabendo que estava lançado a uma morte lenta e certa, ele entendeu o seu destino e se dedicou a tentar desfrutar daqueles ultimos momentos em que ainda possuía energia para sentir a beleza da vida em suas mais diversas manifestações.

Até que, em um momento em que ele descansava deitado de barriga para cima no dorso de Sheshnag, com o rosto virado para o céu e os olhos fechado, ele ouviu. Bem ao fundo, longe. Pensou ser um truque da sua mente, quando o vento levou o som embora de seus ouvidos. E então, ouviu de novo. E agora, com um pouco mais de nitidez. Era uma hélice. Só podia ser uma hélice.

Olavo começou a rir novamente, enquanto uma lágrima se formava no canto do seu olho. Seu cérebro mandava que ele se levantase, pulasse, gritasse agitando os braços. Mas seu coração dizia-lhe que não deveria ter esperanças, que ele não aguentaria o baque de descobrir que o som não se passara de um truque do seu subconsciente. Ele optou pelo meio termo; abriu os olhos desconfiadamente, imóvel.

Ele teria que se virar para olhar em direção ao som. Forçou a cabeça contra o corpo da baleia, enxergando o lado oposto de cabeça para baixo. E então viu aquele pequeno mosquito barulhento sobrevoando o céu do Atlântico. Era um helicóptero.

***

A equipe de resgates havia saído do aeroporto de Angra do Heroísmo, cidade localizada nos Açores, rumo à região em que estimava-se que poderia ter ocorrido a queda da aeronave. Nada era certo, mas para gente do ramo, como os militares que realizavam aquela operação, era certo que o destino do voo havia sido trágico, e que a localização dos destroços do avião seria um pouco além de onde a comunicação aflita do piloto com a terra firme havia sido perdida. No entanto, não haviam tido sucesso nas buscas e retornavam para a base, de onde uma outra equipe partiria no turno da tarde.

Porém, quando já haviam percorrido boa parte do caminho de volta, notaram o grupo de baleias que nadava na mesma direção que eles, rumo aos Açores. O piloto voou por sobre o grupo e depois deu a volta, parando no ar à sua frente, curioso. Foi quando um dos militares visualizou através de sua luneta uma figura minúscula em cima de uma imensa baleia de quase trinta metros de comprimento, agitando os braços enlouquecidamente.

"Ei, chefe, tem alguma coisa ali!", gritou o militar para seu superior, que prontamente pegou sua luneta e também viu a figura estranha na água. "Aproxime, piloto! Tem alguma coisa na água!".

O piloto dirigiu o helicóptero rumo ao grupo de baleias, baixando a altitude da aeronave. Quando estavam próximos o bastante, o superior olhou novamente pela luneta e viu nitidamente o ser maltrapilho que se debatia copiosamente no dorso da baleia.

O superior deu a ordem, e o piloto posicionou o helicóptero de acordo com que um militar pudesse descer em uma corda para fazer o resgate. O superior não acreditava que o homem que se achava na água pudesse ser um sobrevivente do acidente aéreo. Estavam muito longe da sua área de possível localização. No entanto, nunca havia visto ninguém cavalgar uma baleia em pleno oceano selvagem antes. Parecia coisa de mitologia.

O militar responsável efetivamente pelo resgate do homem na água desceu pela corda, e, aproximando-se cada vez mais, notou o estado cadavérico da figura que lá estava. Mas se era um cadáver, era um cadáver que ria e chorava como um louco. Ele não queria descer sobre a baleia. O medo da situação o dominou e paralisou, com as mãos estendidas ao rapaz, longe demais para serem alcançadas. Foi quando ouviu a voz do jovem homem pela primeira vez. "Ela é minha amiga. Pode vir que ela é minha amiga. Ela é Sheshnag, e eu quero me casar com ela. Se for uma fêmea, é claro. Se não for, já pensou o tamanho que deve ser?", e começou a gargalhar descontroladamente. Sem mais ter o que fazer naquela situação, o militar desceu até o populoso dorso da baleia azul e disse em seu forte sotaque do português dos Açores, "Fique calmo que eu vou prender você a mim e vamos subir para a aeronave". Aquilo soou como música nos ouvidos de Olavo.

Os dois subiram juntos, e Olavo olhava sua ascensão como se seu corpo tivesse ficado na água e sua alma subisse ao além. Enquanto se afastava da água e chegava ao helicóptero, ele olhou para baixo, superando todos os seus medos, olhando o mar à distância embaixo. Sheshnag estava lá. A baleia se mantinha parada embaixo de onde Olavo subia, enquanto as outras vagavam ao redor. Uma lágrima escorreu do seu olho e caiu em direção à baleia, e antes que os militares pudessem puxá-lo para dentro do helicóptero, ele se dirigiu uma última vez à sua salvadora baleia, reverberando as palavras de Zorana: "Are you a saint?".